O método perspectivista de análise de redes sociais [novo paper]

Screen Shot 2016-06-03 at 10.32.34

Acabo de publicar um trabalho completo que esmiuço as bases teóricas que, aqui no Labic, estamos a estudar para analisar relações em rede. O paper é apresentado na Compós 2016, sob o título Um método perspectivista de análise de redes sociais: cartografando topologias e temporalidades em rede. E pode ser baixado aqui: http://bit.ly/1U2d1WD.

O trabalho é uma tentativa inicial de emular a teoria dos grafos, a teoria ator-rede e a teoria do perspectivismo ameríndio, num mesmo propósito: identificar as chamadas perspectivas em rede, através da coleta, mineração, modelagem e visualização de dados digitais, apresentando, para isso, os softwares que desenvolvemos para tais etapas metodológicas da ciência de dados (data science).

NAO VAI TER COPA: A APROPRIAÇÃO CONSERVADORA NO TWITTER

Trabalhando na revisão da dissertação de Jean Medeiros sobre o movimento ‪#‎NãoVaiTerCopa‬ (2014) no Twitter. A dissertação apresentará também o conceito de “taxa de diálogo”, que construímos conjuntamente. Mas queria dar um spoiler sobre minha conclusão em torno do movimento #NãoVaiTerCopa: ele foi completamente embalado à vácuo por perfis ligados ao atual campo conservador. Foi uma dobradinha interessante: os movimentos de rua eram brutalmente reprimidos na rua, e a turma do‪#‎VemPraRua‬ construía massivamente uma máquina de bots e outros bichos para propagar essa repressão, notificando continuamente muitos veículos de imprensa e webcelebridades, mas sempre com um viés antipetista. Não é à toa que a correlação das hashtags “NãoVaiTerCopa” e “ForaDilma” tenha se revelado a simbiose mais oportunista no discurso das publicações no Twitter. Quem estiver a fim de dar um confere pode analisar o perfil-hub @_naovaitercopa (http://twitter.com/_naovaitercopa). Hoje ele se chama ‪#‎VemPraRuaBrasil‬, com avatar escrito “tchau querida”. É impressionante como os coletivos que conduziram as ruas de 2013 a 2014 deixaram um vácuo enorme na condução das narrativas sobre seus respectivos movimentos. E isso explica, contraditoriamente, a própria emergência da “nova direita”, que se apropriou inteiramente das lutas para ressignificá-las através de um vocabulário antipetista (que servia a um alvo eleitoral do período). É claro, houve uma contra-narrativa governista (a tal‪#‎copadascopas‬), mas que foi atropelada pela rede boleira (‪#‎vaitercopasim‬‪#‎imaginanacopa‬, a da zueira). Proporcionalmente, no campo eleitoral, esse vácuo narrativo também ocorreu (ainda continua) na campanha de Marina Silva (não na do Eduardo Campos, que, é bom lembrar, abusou de robôs logo no começo da sua campanha, quando se lançou presidente). E talvez esse antipetismo, longe de ser o traço que amalgama a crítica dos movimentos pós-junho, seja o substrato narrativo mais bem sucedido desde lá.

Meus novos artigos no Medium: redes e política

Publiquei três novos artigos no meu medium. Para ciência:

Uma série de repercussão foi gerada sobre eles. Duas delas podem ser lidas nas seguintes reportagens:

E eu também participei do debate promovido pela ADUFRJ, onde faço uma reflexão sobre esse atual período histórico brasileiro.

CARTOGRAFIA DO #NAOVAITERGOLPE NO FACEBOOK

Indegree1903
Cresceu muito, em uma semana, o número de eventos, grupos e páginas criados pelas ruas da esquerda para “defender a democracia”, para dizer “não vai ter golpe” ou ser “contra o golpe”. A cada dia é preciso atualizar os números. Em 19/03, eram 64. Hoje, 27/03, já são 793. São canais no Face criados muito recentemente, praticamente nas últimas duas semanas.
Numa rápida análise, percebi que são segmentos artísticos, universitários e movimentos sociais organizados que mais se destacaram na criação e alimentação desses “canais vermelhos”. A elevada participação desses segmentos é importante para demarcar a diferença entre as ruas da esquerda das da direita. A “tropa de choque” cultural fez amplificar notícias e mobilizações sobre a “deposição constitucional” da presidente Dilma, o chamado golpe paraguaio, agora conduzido por Eduardo Cunha, na Câmara. Fez ainda fomentar um debate dentro do campo das esquerdas (mas é golpe mesmo? não será melhor convocar novas eleições?) e bloqueou a ofensiva dos perfis de direita na rede, que agora acedem a uma perspectiva defensiva, baseada na ideia tautológica do “impeachment está previsto na constituição”. E miram o jogo jogado na Câmara, através de trolagens aos deputados que votarão na Comissão do Impeachemnt.
Indegree
Não estão presentes na minha coleção de dados a rede de páginas noticiosas do #naovaitergolpe, ou seja, Jornalistas LIvres, Cafezinho, Ninja e tantas outras. Percebi que começa aparecer eventos contra o “golpe” mais ligados à Igreja Católica. E, apesar da diversidade desses eventos (atos, debates, principalmente), o movimento #NãoVaiTerGolpe ainda não conseguiu construir o que eu e Toret chamamos de “rede de coletivos desencadeadores” no território nacional. Ou seja, Não há, por exemplo, um “Não Vai Ter Golpe SP”, um “Não Vai Ter Golpe RJ”, um “Não Vai ter golpe ES”, como aconteceu com o #NaoVaiTerCopa no Facebook. A estruturação territorial de uma rede de coletivos no Facebook aparece mais nas ruas da direita (em especial, no MBL), embora as páginas da Frente Brasil Popular (com fins governistas) busquem construir essa regionalidade. Na falta disso, de modo emergente, e em cada estado da federação, os hubs das manifestações do dia 31 de março vão aparecendo de modo espontâneo em eventos, grupos e páginas o Face.
Outra pequena nota: No dia 19/03, a página de destaque em volume de interação era http://facebook.com/909827309124576. Já na última semana, http://www.facebook.com/735288736605613. Isso evidencia que há um público que está dispostos a republicar narrativas das ruas de esquerda e não apenas confirmar “participação” em eventos no Facebook. Ou seja, aumentou a tropa de slackativistas, aqueles que não vão aos atos, mas compartilha notícias deles nas redes sociais. Sigo acompanhando os fatos, apontando que as manifestações do dia 31 de março continuam aquecidas.
tagsred
Legenda:
Os dois grafos representam dois períodos. O primeiro, Do dia 12 a 19 de março, quando eclodem as manifestações das ruas da esquerda, no dia 18/3. Nota-se um número pequeno de eventos, páginas e grupos sobre eles: 64, com a participação ativa de 20521 usuários.
 
Já o segundo grafo representa o periodo de 19 a 27/3, quando há uma explosão interativa no Facebook – uma expansão no número de canais, de 64 a 793 (esse dado precisa ser sempre atualizado), e de participantes ativos na rede, de 20.521 para 91.114 usuários.
 
Vocês notaram que os rótulos dos nós são números. Sim, é o ID da página no Facebook. Fiz isso porque, se deixasse o nome das páginas, bagunçaria o grafo todo, pois há canais que possuem nomes enormes. Para ser mais transparente, publico abaixo a lista dos canais mineirados conjuntamente. Decidi coletar os likes (que representam as linhas do grafo) dados usuários (nós) aos posts dessas páginas/eventos/grupos (também nós). Para descobrir qual página representa qual número, é só digitar facebook.com/ID. Caso queira identificá-la na minha lista, é só checar mais abaixo.
 
Peço desculpas antecipadamente se uma dessas páginas não estiver associada aos protestos da esquerda. Tive apenas 1 hora para fazer a limpeza do dataset.
 
Valeu!!!!

Continue reading

COM QUE ROUPA EU VOU? O #VEMPRADEMOCRACIA NO TWITTER

18M
 

COM QUE ROUPA EU VOU? O #VEMPRADEMOCRACIA NO TWITTER.

As ruas do dia 18 de março fizeram o governismo mais do que respirar. As esquerdas (de maioria lulista) passaram a disputar as ruas, abrindo leque para uma ocupação ampliada de diferentes grupos que as constituem.

De certo, essas manifestações afirmaram, ao menos, o direito à diferença e ao voto popular. Que todos possam se vestir do jeito que quiserem. E que se respeite o voto de 2014. Se as ruas de domingo expulsaram lideranças tucanas, impondo limites ao binarismo; as ruas de hoje impuseram ao binarismo um pequeno gesto de desconfiança, porque os seus participantes sabem muito bem que estão sendo espoliados por uma crise que lhes foi conduzida por elites jurídica e parlamentar que estão desmoralizadas. “Eu não odeio você”, belo cartaz que trouxe a mensagem mais importante do dia, expressando uma mensagem de comunhão política.

As ruas passaram a ser mais disputadas pelas esquerdas. Hoje vimos um “chega pra lá”, no sentido futebolístico, às estruturas de poder que se assanham em destruir conquistas democráticas. Foi um movimento amplo, em diferentes cidades, com forte destaque para o nordeste brasileiro, além óbvio de SP, RJ e BH. Em comparação com o domingo, a composição das ruas de hoje é, no olho, mais diversificada, em termos de classe, cor, gênero e idade. E a junção dessa diferença e mais a adrenalina que se tem quando se está nas ruas vão fazer com que essa turma volte à ocupação das avenidas (e mantendo esse cenário político – veja aí o Gilmar Mendes – tendem a ser maior). O canto mais forte de hoje, o “não vai ter golpe!!”, nao pode ser simplesmente desprezado. É uma voz que mira nos abusos do poder judiciário e na corruptas relações no Parlamento brasileiro.

É mistificante dizer que os atos de domingo e de sexta não sejam partidários. Eles são. São articulados, apoiados, financiados e convocados pelas instâncias partidárias, utilizando muitos movimentos sociais como correias de transmissão de suas teses (embora essa transmissão ocorra com resistências).

Mas há uma incógnita: tanto no protesto de domingo, quanto no protesto de hoje, houve muita gente não-alinhada às dinâmicas dos partidos (PT e PSDB). Assim, quem é o “manifestante” que engrossa o coro, transforma os atos em massivos, e que possuem  expectativas que estÃoo além das disputas de poder entre o  PSDB e do PT?

Talvez o esforço de compreensão esteja em saber quem é esse sujeito que hesita na roupa que traja e resiste a ser um amarelo ou um vermelho. Há cinismos – que dificultam essa compreesão – em tudo quanto é lado. Na sexta (18), por exemplo, entre os vermelhos, o jogo de cena se traduz em “não apoiar o golpe, mas se ser crítico ao governo conservador de Dilma”. Entre os amarelos, o jogo de cena se traduz em “apoiar o golpe porque é um governo de corruptos comunistas”.  No primeiro caso, o discurso busca bloquear, entre os vermelhos, os “sem roupas”, que exigem uma democracia material, isto é, radicalizar a redução das desigualdades sociais e governar com aqueles que querem “fazer um mundo novo”, algo hoje longe do horizonte petista. No segundo caso, entre os amarelos, o discurso busca bloquear que os seus “sem roupas” não questionem a corrupção endêmica das máquinas partidárias, que estão de joelhos diante da Lava Jato, o que faz o apoio ao impeachment virar uma piada, ao se analisar que a comissão parlamentar que cuida de caso é recheada de investigados e processados por inúmeros casos de “má” administração do dinheiro do povo, cujo pior símbolo é Paulo Maluf.

Mas são os grupos dos “sem roupas” que seguem inflando os compartilhamentos, discussões e posicionamentos críticos nas redes sociais. Mas a incerteza é: com que roupa vão continuar a ir?

Queria apenas, agora, descrever alguns dados coletados na praça pública que é o Twitter. Essa foi a maior manifestação governista que já coletei nessa rede social: são 310 mil mensagens em apenas 24 horas. Recortei esse período curto para que a ambiguidade do tempo não contaminasse a amostra. Os termos que busquei no sistema do Twitter – em vários idiomas – foram os seguintes: vemprademocracia, “vem pra democracia”, naovaitergolpe, “nao vai ter golpe”, golpenuncamais, juntospelademocracia, todospelademocracia, dia18euvou, lulavalealuta, todospelademocracia, ato+defesa+democracia e “lula discursa”. Separei somente as mensagens que possuem relações de comunicação: retweets, comentários (replies) e menções. Isso fez gerar as relações que figuram o grafo. A interpretação é óbvia: a rede das esquerdas se adensou. E, nestes termos, os perfis mais oposicionistas não representam nem 15% das interações. A rede possui 48 mil perfis, que se mencionam 168 mil vezes. Mas é a metade do número de usuários em comparação com a rede de participantes do domingo. Mas, depois da manifestação, conseguiu quintuplicar o volume de menções a suas hashtags, em relação ao que coletei ontem, já publicado aqui no FAce. No auge da manifestação, durante o discurso de Lula, foram 1 mil tweets a cada 90 segundos. As redes das esquerdas (mesmo com maior incidência petista) viveram o seu 15 de março de 2015.

É agora  uma rede de mobilização, com baixo volume de “adversários” binários, e pronta para ganhar mais fôlego. Há bots, mas havia também nas redes dos amarelos. Como nao coletei termos mais ampliados, como ‘manifestação’ ou ‘protesto’ ou ‘lula’, ficaram de fora dois personagens desse 18 de março: artistas e intelectuais, muitos declararam apoio à “tentativa de golpe”, é só passear pelo Twitter para vocês logo encontrarem a Leandra Leal. Outra coisa: tenho uma hipótese que esse movimento passou mais por redes privadas e joviais de comunicação (snap, eventos, zaps, chats, grupos no face). É uma turma mais jovem, mais sagaz. Isso vai contaminar mais gente “sem roupa”, porque, após o ato, vai ser transmidiatizado o ato: Youtube, Blogs, Tumblr, Posts em Twitter, Face, Zaps.

Estamos também experimentando uma disputa entre a força do um para todos radiodifusor (feita pelas emissoras de tevê- especialmente a TV Globo, mais engajada na cobertura política) e do “um para todos” algorítmico, presente na multiplicação de midias livres, lulista ou oposicionista, que ganham espaḉo e efeito de repetição em algoritmos do Facebook (onde a repercussão ocorre), que fazem tudo se repetir nas bolhas nossas de cada dia. Difícil prever quem perde e ganha.

Em mim, tudo isso, contaminou: apoio à soberania do voto popular e o direito à igualdade de tratamento judicial. Votei em Marina. Se eu quiser elegê-la, voto (quem sabe) nela em 2018. E, enquanto o tratamento judicial continuar sendo completamente desigual (e persecutório), não há como apoiar nenhuma medida levada à cabo por Eduardo Cunha.

QUE SE VAYAN TODOS ?????

manif_15hComRotulo

 

Coletei no Twitter os seguintes termos a partir das 15h do sábado (12/3): protesto, manifestacao, manifestante, manifestacoes, vempraruabrasil, marchadoscorruptos, carnadogolpe2016, marchadoscoxinhas, vemprarua e “vem pra rua”.

Optei por trabalhar palavras do senso comum e as hashtags oficiais dos governistas e oposicionistas, assim garantiria uma análise mais amplas dos discursos sobre os protestos.

A palavra mais mencionada nos tweets, excetuando os termos das coleta, foi CORRUPÇÃO. Uma supresa para mim. Engana-se, ao meu ver, quem se dirige aos movimentos de hoje interpretando-os como algo restrito a um campo estritamente de direita. O que vemos hoje foi uma reação à classe política – e a mega máquina de destruição do comum vigente – do país. Agora os governo de Dilma, do PSDB e do PMDB viraram os alvos da indignação popular. Não sabemos precisar ainda o tamanho disso dentro da massa de manifestantes. E não sei como os partidos de direita vão reagir a isso, porque, pela primeira vez, as ruas os rejeitaram. O efeito colateral da Lava Jato viralizou não apenas contra Lula, mas contra Aécio, Alckmin, Renan, Cunha etc.

Plotei a rede de compartilhamentos no Twitter, a partir de 236.612 retweets, coletados a partir dos termos e período já mencionados. Ao total, 100.298 perfis retuitando e sendo retuitados. Há um isolamento das redes mais governistas, que sustentam que há um golpe contra a Democracia em curso. Mas o outro pólo conservador foi engolido por uma população feita de celebridades, youtubers, nativos do Twitter e perfis que não são muito de discutir ou satirizar a política.

Há muito humor, é verdade, nesssa rede. O perfis mais periféricos deitaram e rolaram hoje, viralizando memes de situações grotescas.

Mas,pela primeira vez entendo que a rede não se polarizou com a dos governistas, mas a deixou isolada, conversando entre si. A rede amarela foi formada por muitos seguidores que compartilharam veículos de comunicação Revista Época, Globo NEws, Estadão, os organizadores dos atos (VemPRaRuaBR, o MBL, o Revoltados ONline), como ainda políticos e perfis mais conservadores, mas circundando-os há uma multidão de perfis independentes (em maior número). Esses protestos embaralharam mais as ideologias políticas. Seu efeito é colocar um problema enorme para a política: “quse se vayan todos”. Mas será??? Será que agora não vai rolar o acordão, por cima, para tentar destruir o monstro das ruas?

Não passarão em branco os gritos de “ladrão de merenda” (endereçados a Alckmin), fora vagabundo (endereçados a Aécio) e fora ladrão (endereçados a Lula), como ainda o forte grito de impeachment.

Não há horizonte político seguro. Tudo em aberto. A velha direita foi expulsa da festa, a esquerda, humilhada e a nova direita dá andamento e organiza as ruas, mas não controla mais tudo.

Governar obedecendo: políticas culturais e minorias sociais

Fabio Malini | Departamento de Comunicação Social | Ufes

Boa noite! Eu gostaria de agradecer o convite feito pela organização do evento, em particular, ao Fabrício Noronha, essa alma inquieta, que insiste numa existência provocadora e numa cidade recheada de possíveis, numa política da vida. Agradeço a provocação que ele me fez, sobretudo porque ele sabe que o meu tempo é o dia, e à noite, tenho dificuldades de concentração. Uma provocação, porque é um convite ao encontro com a cena local, a cena cultural da cidade, uma cena da qual me afastei desde 2009, para testar novos mundos. Então é um convite ao retorno a esta cena, um retorno para colaborar na produção cultural na camada física e lógica do território. Agradecido.

Queria saudar a todos os colegas da mesa, a Ana Laura e sua delicada escritura; ao João Gualberto, maestro com sua notória emerência universitária; a Eliane Dias e a sua história de luta na produção cultural paulistana; e ao Guilherme Varella, quem eu acompanho desde das memoriais lutas no campo do direitos autorais.

O título desta mesa é “A Cultura como gatilho das Transformações do Brasil”. De fato a cultura e a informação hoje possuem uma centralidade nas transformações dos processos produtivos. É verdade, nesse capitalismo turbinado, que não cessa de incorporar nossas diferenças, nossas invenções, nossos modos de resistir, nossas estéticas, nossas comunidades, nossa linguagem e a sua regulação algorítmica, toda nossa força cérebro, e  faz com que nosso corpo fique ávido por movimento, mas nossa alma intensamente cansada, pois então é a criação, a criação – mais largamente a cultura, que inscreve na mercadoria conceitos como exclusividade, inovação, tendência, valor agregado, fazendo com que todas as dinâmicas econômicas – de um café colhido a um software desenvolvido – tornam-se produtos de uma “economia criativa”.

Essa centralidade cultural, obtida após o advento de processos produtivos just in time, fez com que o eixo da produção saísse da fábrica para as metrópoles. E nas metrópoles todo um conjunto diversificado de coletivos, empreendores políticos, políticas estatais de fomento, agenciamentos experimentais, grupos de inovação, foram criando redes de cooperação produtiva, de modo que não há cidade no mundo, nesse capitalismo, que prescinda de todo uma vitalização de suas espacialidades a partir do trabalho dessa multidão de singularidades que cooperam. Em algumas cidades, a fábrica, ainda baseada na crença que é a própria centralidade do desenvolvimento, na própria convicção que é a diferentona, insiste em apontar que o comum – ou seja, o ar que respiramos, a água que tomamos, a linguagem que processamos – nada tem a ver com ela. Assim, o ar, pesado de toxinas; o mar, pesado de minério, a água, recheada de lama, constrange a metrópole, que se vê freada em sua vocação criativa.

Quando falamos “centralidade da cultura” não estamos brincando. Não é um acordo com o regime de tolerância à “cultura do pó preto”, que atravessa linhas e mais linhas dos poderes, sedimentando uma Cultura Exclusivista, de uma Elite que tema compactuar com esse tipo de Desenvolvimento, que condiciona o criador aos departamentos do marketing. Quando falamos em Centralidade da Cultura significa que afirmamos uma Centralidade dos Movimentos Sociais da Metrópole. Afirmamos um governança, uma política, um programa, cuja gestão e fabricação são dos Movimentos Metropolitanos. A metrópole é a nova fábrica.

Então eu gostaria de falar desses nossos sintomas metropolitanos, que demonstram o divórcio entre o regimes da “cultura da centralidade” e o da “centralidade da cultura”. E aqueles que ainda militam na “cultura da centralidade” sabem que vivem seus últimos momentos, porque sabem que a tendência (aqui o termo é bem no sentido marxista) de reunião, tesão pela criação, pela cooperação, pela conexão, pelo encontro, aponta para uma inteligência difusa cuja centralidade da cultura reside no trabalho da metrópole.

Então eu quero mostrar e refletir alguns sintomas dessa perturbação cultural. Reforçá-las. Marcá-las. E tirar dessa conversa três programas, três eixos urgentes dos movimentos metropolitanas.

O primeiro desses programas eu vou chamar de “deslocar o pobre, recolocar as minorias”. Queria começar com um relato. O relato é de Luiz Mario de Andrade, de 39 anos, morador de Cariacica. Mario teve o filho e sobrinho, ambos negros, barrados num shopping da cidade. Os jovens, que seguiam para o cinema do shopping, denunciaram que os seguranças liberavam adolescentes brancos, enquanto jovens negros com boné e cordão eram barrados. A velha cultura da centralidade, de origem escravocrata, se mostra ainda pesada sobre aqueles que pensam que, através do acesso ao consumo, teriam direito à realização plena de sua cidadania. O Senhor Mario precisa ser aplaudido, por denunciar esse processo de naturalização da superioridade, denunciar essa ideia de que a criança pobre precisa estar guetizada, imobilizada, barrada em seus processos coletivos e de andanças pela metrópole. Ele merece, por sua corajosa denúncia, nosso aplauso. Muitos aplausos.

Coletivos de jovens de periferia que fazem do encontro, do contato entre os corpos, dentro do nosso paraíso consumista, passaram a ser alvos nos radares de comerciantes de shopping, brutalidade da polícia e de liminares da justiça. Angelo Bortolon, mestrado em Comunicação e territorialidades da Ufes, encontra uma figura subjetiva reveladora em sua observação sobre os rolezinhos no Moxuara: o ‘segurança do shopping’. Eu tenho muitos amigos que são ou foram segurança. Quase todos eles são muito afáveis no trato cotidiano. O segurança, frequentemente negro, é a peça mais frágil e mais humana – talvez a única – dos sistemas de controle que regulam o consumo cultural. Em seu estudo preliminar, Angelo aborda então um segurança e o indaga sobre o que ele pensa dos frequentadores dos rolezinhos: “uma gente à toa que não tem nada para fazer em casa e vem pro shopping deixar a gente doido”. Essa frase é uma chave de respostas. Porque esse curto-circuito nas estruturas de controle, me parece, o elemento da potência da vida. Mas, de outro lado, o “nada pra fazer” é tão sintomático de uma busca contínua por uma subjetividade-marca, que o movimento capitalístico que aprisiona – e despotencializa – esses movimentos. A cidade, espinhosa para a negritude deixou ali, no lugar onde a cidade é puro controle, numa brecha consumista, a possibilidade de se encontrar seguramente, mas a velha política escravocrata atravessa todos extratos de classe. O que eu quero dizer é o seguinte: precisamos dar um salto no pensamento de formuladores e gestores: deslocar nossos esforço do pensamento do pobre (como termo quantitativista e economicista) para as minorias sociais (o que significa ser favelado, mulher, negra, lgbt).

Abordo isso porque esse caso dos rolezinhos demonstra que a inclusão social via consumo tem seus limites. O trabalho vivo da metrópole precisa fazer florescer os coletivos e grupos minoritários, porque é a população favelada, feminina, lgbt, indígena, infantil e todas essas subculturas fantásticas, que são os grupos que verdadeiramente interessam potencializar.

Esses meninos ganharam, eles atravessaram a ponte. A multidão ganhou. Mas eles vivem exilados em sua própria cidade. Mas, vejam, eles dizem, como Jim Morrison: “vocês têm o poder, mas nós somos em maior número”.

Eu me lembrei, a partir desse caso dos rolezinhos, de um texto maravilhoso do Foucault, O Nascimento da Biopolítica, quando Foucault argumenta que o capitalismo não é um propulsor de liberdade, mas um regulador de liberdade. Este é um ótimo livro para debater esse poder sobre a vida (a marca, o consumo, o rolê) e a potência da vida (a descoberta da transgressão e a insistência em dobrar o poder). A liberdade tem uma centralidade no capitalismo: de expressão, de compra e venda, alfandegária, de associação etc, mas não é plena, porque o capitalismo é uma regulador das relações livres. Parece-me que o rolezinho faz parte desse movimento de direito à mobilidade tão transversal, depois de junho de 2013, em todas as cidades brasileiras.  Que nossas políticas culturais tenham como foco as minorias sociais e que essas políticas contribuam e produzam uma economia compartilhada, um ‘mercato’ cuja centralidade não seja a de galgar os 1%, mas seja distributiva, digna e solidária.

Um segundo ponto do programa: precisamos multiplicar os sensores urbanos e rurais. Temos um desafio importante que é a de transformar os cidadãos em sensores, criando uma tecnopolítica a partir de dados coletados a partir de tecnologias sensoriais, ampliando os modos de participação e interferência nas políticas públicas. Não faltam exemplo de disruptura social do homem midiatizado. As excepcionais cobertura midialivristas durante as mais variadas manifestações na Grande Vitória demarca que a disputa da opinião, do ponto de vista, da razão pública dependerá cada vez mais da transformação do cidadão conectado com suas tecnologias móveis em protagonistas de uma cultura colaborativa, que faz, com que seus seu agir digital interfiram no modo de organização da cidade. Para isso, é hora de incentivar hackapps, hackatons, ocupações tecnológicas, ações midiliavristas que mudem a cidade. E amplie a transparência do Estado.

É inadmissível que a gente não possua estações de medição da poluição do ar que sejam feitas a partir de sensores e tecnologias de baixo custo (Arduínos e seus sensores). É uma política vital para que a gente não assista monitoramentos da água do mar sendo feita por instituições comprometidas com o 1%. Se cultura quer ser central, é preciso engendrar uma tecnopolítica para manter independente – do ponto de vista do pensamento cultural – os atores da cidade.

Um terceiro ponto desse programa: governar obedecendo. A cultura revitaliza, agora, ocupando os espaços. É uma ocupação que requer riscos. Não haverá alternativa para governos que pensem de outra maneira. O sintoma mais precioso de quem governa terá de governar obedecendo é a sequência de ocupações que explodiram após junho de 2013. Não digo apenas os ocupais em praças e instalações públicas, digo também as ocupações artísticas, urbanas, experimentais, tecnológicas. São exitosas, mudam a mentalidade política. Uma das ocupações políticas fundamentais é a retomada carnavalesca na cidade de Vitória. O Carnaval no Centro fez uma geração inteira deixar de temer o espaço para habitá-lo, e assim perceber que esse Centro de Vitória é uma periferia produtiva a ser ocupada. Com problemas? Sim, é necessário cumprir com demandas sociais, mas essa consciência se descobre enquanto se luta. Um processo constituinte é algo lento. Mas aquilo que era impossível ontem hoje é um programa factível.

Estamos a ouvir “el run run”, o barulho que vem debaixo. Que o Carnaval possa deslocar o eixo das políticas da “centralidade dos grupos consolidados” para a “a agência descentralizada dos movimentos”. Esses movimentos não caíram no conto da “revitalização”, essa concepção que transforma qualquer diferença em pastiche para turista (nada contra, que o turismo se faça com a multidão). O Carnaval deixou o seu recado: não se trata de revitalizar, mas de ocupar. E ocupando traz um modelo de governança: “governar obedecendo”. Por isso que a política da coalização já era. Não funciona, não está mais no horizonte. Porque ela vai dar no mensalão, no trensalão, no merendão, no petrolão. Nisso: num sistema que fecha escola para pagar credores públicos. A ocupação requer trabalho material e imaterial, vivo, cooperantes e autônomo. Parece que agora a gente consegue ver aquilo que estava diante de nossos olhos na forma de sensorium. Agora façamos ocupações, e que se crie uma governança com essas ocupações, que se teste modelos deliberativos que tenha a rua como acontecimento, e não apenas as estruturas cansadas da representação. Mais assembleias horizontais, menos deliberação representativa.

Ao deslocar a cultura da centralidade para a centralidade de cultura precisamos trazer novos léxicos: um github pra cultura, uma pirate bay pra cultura, dar fork nas políticas culturais, criar app para cidadãos, dinâmicas que coloquem a cultura no centro, não como recurso, mas como um bem comum. A transformação sem a defesa do comum ficará barrada, eclipsada, de fora do shopping.

Teatro Carlos Gomes, 03 de março de 2016